Pontaria
- Isabela Serrano
- 19 de nov. de 2015
- 4 min de leitura
Era terça-feira: dia de tiro ao alvo. As três cabines já estavam separadas. João chegou no horário certo, como sempre. Davi e Lucas estavam atrasados, porém apenas alguns minutos. Davi era conhecido como o melhor detetive da cidade, e como se isso não fosse o bastante, também era famoso por sua pontaria. Ele sempre acertava seus alvos com um tiro exatamente no meio da testa. Uma vez, ele alvejou dez tiros seguidos no mesmo ponto. A testa era o que chamava mais a sua atenção. Lucas também era bom, porém entre Davi e Lucas, o chefe escolheu dar a promoção a Davi. João era novato, mas sua amizade de anos com Davi o ajudou a crescer dentro da delegacia.
Dez minutos de atraso. A arma de João já estava carregada, mas não gostava de atirar sem a companhia dos amigos, tiros bons não são nada sem plateia. Meia hora depois, ele recebe a ligação de seu chefe: Davi estava morto. Por um momento, pensou ser uma das pegadinhas que recebeu quando entrou na delegacia. Mas infelizmente era verdade. Quando João chegou ao apartamento, viu o corpo do amigo pálido, sem vida, estirado no chão do escritório.
Tudo indicava suicídio: a porta estava trancada por dentro, a chave no bolso do morto, as janelas bem fechadas e a pistola na mão. Nenhum sinal de invasão ou briga. A única dúvida foi levantada pelo legista que disse ser muito estranho alguém se matar com um tiro exatamente no meio da testa, normalmente os suicidas disparam a arma de lado.
A dúvida maior de João, não era onde o tiro entrou e sim o fato de ele ter entrado. Davi não tinha nenhum sinal de depressão, sua vida estava ótima, tinha acabado de ser promovido no emprego e era conhecido em toda a cidade. Se ele estava morto, ele tinha sido morto por outro alguém, e não por ele mesmo. Talvez um dos bandidos que o temiam tivesse feito isso.
João começou a analisar a casa procurando por pistas, mas seu chefe o interrompeu. Ele não poderia participar do caso, pois era muito próximo da vítima e isso atrapalharia. João protestou, mas não teve jeito, seu chefe estava irredutível.
Em sua casa, João pode chorar por seu amigo. Depois de enxugar as lágrimas, ele decidiu que resolver e obter justiça por aquele caso era uma questão de honra.
A madrugada demorou a chegar. Às três horas da manhã, João saiu de sua casa com seus acessórios de trabalho e dirigiu-se até a casa do amigo morto. Pensou em pedir a ajuda de Lucas, porém provavelmente ele sofreria ainda mais se visse Davi mais uma vez. Ele foi o primeiro a receber a ligação do chefe e reconhecer a vítima, por isso não apareceu no tiro ao alvo.
Com suas ferramentas, ele abriu a porta do apartamento, ultrapassou a faixa de “não ultrapasse” e começou sua busca. João não sabia ao certo o que procurar, o único que também tinha dúvidas sobre o caso era o legista, porém não tinha como provar sua teoria. Para os outros, aquele caso já estava fechado, mas eles não conheciam Davi como João. Algo definitivamente estava errado.
Enquanto vasculhava cada canto, ele tentava ao máximo afastar as lembranças, precisava fazer aquilo direito, não podia deixar nada escapar. Quando chegou ao escritório, viu as marcas de sangue espalhadas pelo cômodo. O corpo e a arma já estavam sobre a posse da perícia, sua única opção era procurar por pistas que ninguém conseguiu encontrar.
Já estava quase amanhecendo. João já havia revistado minuciosamente todos os cômodos. Antes de desistir e categorizar o amigo como um suicida, decidiu voltar uma última vez ao escritório. Ele ficou parado encarando as manchas de sangue na parede com sua lanterna de bolso, nada daquilo fazia sentido.
Então a luz do sol começou a brilhar por entre uma fresta que vinha da parede da frente feita de tijolos rústicos de barro. Davi sempre gostou do clássico. A fresta era quase invisível, mas João apagou sua lanterna e com as luzes apagadas e sol nascendo, ficava mais fácil de visualizar. Ao se aproximar da parede, viu que tinha um tijolo solto. Como pode deixar isso escapar? O trabalho era bem feito, quase imperceptível.
O detetive retirou o tijolo com cuidado. Ele estava mais ou menos na altura de Davi, apenas centímetros acima de João. Quando segurou o bloco, ele percebeu que estava oco por dentro. Virou do lado contrário e encontrou um papel em seu interior. O coração dele estava batendo tão forte que era possível escutá-lo no silêncio do amanhecer.
O papel trazia as seguintes palavras: “Eu só precisei tirar um tijolo. Quando ele foi limpar a arma, ficou na posição que eu precisava e com o objeto que eu queria. Está vendo? Nem é difícil acertar alguém com um tiro na testa. Ps. Eu sabia que não conseguiria ficar sem investigar esse caso, você é muito teimoso para isso. Com amor, Lucas”.
João tremia. As lágrimas escorriam por seu rosto, mas agora não eram mais de luto, eram de ódio. Lucas! Ele era o melhor antes de Davi chegar e precisava voltar a esse posto. Como João não pode enxergar o ódio que Lucas sentia? Todo seu rancor? João olhou pelo buraco que o tijolo deixara. Do outro lado da rua, estava o apartamento de Lucas. Era possível visualizar a imagem de Lucas gargalhando com seu sucesso no prédio da frente. É claro que ele queria que João descobrisse. Além do mais, o que seria um tiro perfeito sem plateia? Além de inteligente, Lucas também se mostrou um ótimo ator.
Caso encerrado. Davi estava morto e o assassino era Lucas. João tentou denunciá-lo, mas não conseguiu. Ao invés disso, seguiu sua vida tentando superar o passado praticando sua pontaria todas as terças-feiras, no mesmo horário de sempre, na cabine de Davi. Quanto à Lucas... Se matou com um tiro exatamente no meio da testa.

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